"A Senhorita X afirma que não tem mais cérebro nem nervos nem peito nem estômago nem tripas, somente lhe restam a pele e os ossos do corpo desorganizado [...]"

quarta-feira, 14 de julho de 2010


a placa dizia: "restaurante". pensou nos trocados no bolso e no que deixara em casa. não importava, por hora. subiu as escadas engorduradas, preparou o prato, sentou-se. pelos vidros embaçados mirou a rua. sentiu-se velha. tão velha quanto a morte. estava triste. ultimamente, perguntava-se com certa freqüência se estava contente ou apenas medicada. não gostava das medicações mas engolia as pílulas sem pensar muito. pensar poderia estragar o efeito daqueles 20mg de felicidade diários.
concentrou-se em comer: agarrar, mastigar, engolir. [como desejou seu canto! o canto onde sentia-se mais que segura e confortável. por quanto tempo ainda seria “seu”?] negou cada pedaço de esperança que vinha a mente. não queria ter esperança. sempre adiara tiros certeiros para agonizar na esperança de ser socorrida. mas nunca havia socorro.
rejeitou o restante da comida que ainda havia no prato. havia mergulhado tão fundo, num lugar tão escuro, que quando voltou as moscas já festejavam em volta das batatas gordurosas. levantou-se, pagou a conta, desceu as escadas ensebadas e pensou nos olhos que sempre a seguiam. não havia mais fuga.

é, o mais provável é que o mundo siga adiante.

segunda-feira, 21 de junho de 2010


[...] com os dentes arrancou a própria língua. sentiu o cortar do músculo e a dor. mas não houve sangue. com a mão direita enfiada pela garganta feriu aquilo que conseguia. sentiu a dor. mas não houve sangue.
com o metal arrancou a pele. já não sentia mais a dor e ainda não havia sangue.
nos músculos apenas pó preto.
aos poucos retirou os músculos e órgãos internos. era penas esqueleto.
e ainda assim não encontrou sangue.

estava seca.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

desérticos canibalismos



encontraram-se no mato que cruzava a estrada de chão do terreno deserto. não foi preciso muito, de pronto perceberam: o deserto era eles.
em meio estouro tudo virou lama, a cada passo dos pés cansados mais lama a cobrir dedos e calcanhares, murchos, rasgados, antigos, cansados.
deram-se as mãos [o que mais podem fazer os beduínos que se perdem na trilha deserta de sal?]. olharam como estranhos um ao outro. jamais haviam se visto, embora fossem velhos conhecidos – amigos, alguns diriam.
vendas negras não permitiam que se aproximassem. apenas tocavam-se com pontas de dedos sem digitais e línguas mortas. devoravam-se aos milhares.
depois, os dentes passaram a morder mais devagar. a mandíbula tornou-se mais lenta, porém, mais forte. mastigavam-se por horas. eram órfãos famintos: odiosos, repulsivos e de mãos dadas parados no negrume da estrada.
a loucura de um alimentava a insanidade do outro. 
descansados, novamente, comiam-se. 




[imagem: women running on beach - pablo picasso (editada)]

quarta-feira, 5 de maio de 2010

[...]

tenho passado semanas atemporais.
passo o dia esperando o crepúsculo vermelho e a noite aguardando a aurora – ambos, pouco me trazem de novo.
tenho tido poucas certezas e muitas dúvidas.
não sei em que dia estou, nem quantos se passaram.
burocracia deixou de ser uma palavra enfrentada por mim.
pouco espero pois nunca sei do que vem.
as frases e os pensamentos estão elevados – em um estágio de vapor. moléculas dispersas, nada novo. nem antigo. talvez apenas o sempre diferente mesmo.
tenho andado torta, sem simetria, sem saber qual fôrma me cabe.
sinto como nunca. mas não prevejo nada. mantenho-me ignorante.

auroras e crepúsculos chegam e se vão. que novidades trarão do deserto, da sede e da fome?
a loucura é uma resposta confiável.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

domingo, 11 de abril de 2010



anda morte:
rua, lua, eternidade;
corre que já está sem tempo.

ruge morte:
santo, sujo, profano;
transa que o tempo te fará estéril.

grita morte:
dentes, garras, pele;
fala antes que o tempo te faça emudecer.

esteja morte:
sempre, por, perto;
antes que se vá com o tempo.


[imagem: salvador dali - horseman of death]