"A Senhorita X afirma que não tem mais cérebro nem nervos nem peito nem estômago nem tripas, somente lhe restam a pele e os ossos do corpo desorganizado [...]"

terça-feira, 27 de outubro de 2009

viver.


- clarice lispector, 1971.


"[...] dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
e me faz sorrir no seu mistério.
o meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim tem me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. inclusive, faço um mal aos outros, que francamente."

domingo, 11 de outubro de 2009

calor de gelo.


dama de gelo em seu castelo. escondida atrás do muro, evitando o sol, num mundo onde é sempre noite.

frio azul líquido que arde na pele.


pele gelada da dama que ela esfrega em cada pele que puder encontrar.

ela quer mais perto, mais próxima da sua.


a dama vive na agonia de procurar sempre um raio de sol vermelho para desfazer o castelo de gelo.

agonia da dama. melancolia. solidão em seu mundo azul.


azul frio em pares – ou, mais que isso. quarto frio, pele[s] fria[s], sexo frio.

calor de aquecedor: não-intenso, limitado, artificial.


a dama não só é fria, como não é orgânica.

sua pele, acostumada com o gelo, passou a ser sintética. funciona esfregando-se em outras tão frias quanto à sua e produzindo nada mais que um gelo morno esfumaçante que se dissipa tão rápido quanto é produzido.

quanto mais peles a dama esfrega à sua, mais artificial ela se torna. esfrega em outras peles como a sua suas palavras, seu frio e ardido azul, seu calor morno, sua melancolia solitária, seus desejos sem fim.


poderíamos ser dois vampiros nos alimentando do sangue quente um do outro: sangue orgânico, pulsando dentro das veias, mantendo vivo e aquecido. mas não somos.

somos dois blocos de gelo sintéticos. frios. frígidos.


dama de gelo em seu quarto frio, de paredes gelo e iluminação sintética.

sexo frio, amores frívolos.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

viver é não conseguir.




por fernando pessoa.


basta pensar em sentir
para sentir em pensar.
meu coração faz sorrir
meu coração a chorar.
depois de parar de andar,
depois de ficar e ir,
hei de ser quem vai chegar
para ser quem quer partir.

viver é não conseguir.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

há[ã]?

. antes de qualquer existência, havia-houve-haveria-há o nada.

e depois tudo.

tudo bagunçado, estilhaçado, quebrado. [e porque não?]


há pedaços de um tudo-nada por toda a parte - um acidente, talvez.


[?]


preciso [de]mais [de]nada para um dia saber sobre que verbo usar.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

o corvo.




, mas foi despertada com uma porta se abrindo. luz branca que se precipita para dentro do quarto negro. olhos negros que a olham. boca vermelha, molhada, cheia de dentes e palavras.


mãos de homem no seu corpo. asas de grande pássaro negro na pele.

mãos que contêm o barulho, que afogam os gritos.


- você não é mais criança.


corpo trêmulo. quente, suado.

um balé de pernas que insistem em se manterem fechadas.

pernas que são abertas. olhos de corvo fitam a menina com desejo, desejo sujo de corvo amaldiçoado. e os olhos castanhos de menina desejam o corvo.

carne rasgada, dilacerada.

rosto molhado de menina. de suor. de saliva. sem lágrimas.


e num milagre de não-tempo aconteceu: a menina metamorfoseia-se mulher.

a mulher-menina chora sozinha no escuro. os lençóis bagunçados. vermelho no branco. o sentimento viscoso entre as pernas trêmulas de mulher.


a mulher-menina gos[z]tou.

[pequena imundície]


e a mulher adormeceu num sono povoado por enormes corvos negros que rasgam, mastigam e engolem a carne de pequenas meninas em quartos escuros.


- você não é mais criança.

[não mais]


- qual seu animal preferido?

- aqueles que tem asas de corvo, escuras, e que rasgam a noite em seu voo.

domingo, 4 de outubro de 2009

branco frio.



no banheiro, sentada no chão, a moça olha a lâmina afiada com um prazer que quase supera a dor que esta sentindo.

o sentimento negro que há nela contrasta com o branco frio das paredes do banheiro. ela sempre teve medo do branco. e ele era o branco. devia ter se afastado antes que as salas brancas dos psiquiatras voltassem. e elas vão voltar.


- por que você fez isso? o que houve para que você cometesse tal atitude?

- sabia que a vida é um presente de deus?

- se é um presente, eu posso recusar.


a veia do pulso pulava. gritava. ela e a lâmina. lâmina prateada, diferente das que ele costumava usar. mais fina. menos sexual. não são marcas o que ela quer agora. mas o prazer de levar a lâmina ao pulso e sentir o sangue quente, vermelho, escorrer pela pele. ver o seu sangue.

é preciso começar devagar. sentir a pele ser cortada com delicadeza. observar o surgimento do pequeno filete de sangue com atenção. saboreá-lo. gosto de ferrugem. libertar o sangue preso nas veias aos poucos.

sangue vermelho que salpica o chão branco. vermelho quente que pinta o branco frio. vermelho como o sangue que um dia esteve no lençol branco. vermelho que fez a infância acabar. vermelho da culpa.

o corte vai ficando mais profundo. o sangue corre mais livre. não há beleza no corte. há bastante sangue no chão.

deitada no frio branco do banheiro, a mente da moça começa a divagar. em algum lugar há uma voz. e há o sangue. há o barulho da porta, e o sangue.


será que alguém quer entrar? porque alguém entraria aqui?


morrer é a única forma de ficar só. nos machucamos e sangramos desde que nascemos. a morte deve ser algo quente. e solitária. sem amores, sem dores. sem o vermelho sangue.

a porta abriu. alguém gritou. muitos barulhos. barulhos nas paredes brancas. panos brancos encharcados de vermelho. vermelho sangue


a sala branca. aventais brancos. jalecos brancos. apenas o branco, sem vermelho. o vermelho foi contido.


o lugar do sangue é dentro das veias, não fora delas.


- bem vinda novamente, moça, as salas brancas. espero que permaneça mais tempo conosco.