"A Senhorita X afirma que não tem mais cérebro nem nervos nem peito nem estômago nem tripas, somente lhe restam a pele e os ossos do corpo desorganizado [...]"
confundo-me entre o que sou ele-ela-ilo-aquilo... esqueço-me do individual e choro as mágoas de meus impulsos que atingem mais do que eu.
EU?
quem sou eu? o que fiz de mim?
entrei por um corredor reto e perdi-me.
o vestido não me cabe mais. alargou-se.
ou será que fui eu quem diminuiu?
talvez eu não agüente tantas quedas quanto § pensa.
talvez eu jamais tenha levado um tombo se quer.
talvez, talvez... talvez apenas um tropeço acabe com minha altura.
talvez eu tenha apenas 1,60m e nada mais.
*
não sou rizomática. sou raiz podre por de baixo da terra.
sou verme rastejante, parasita.
não sei ser compainha ou campanheira.
somos eu e meu egoísmo. vivo assim. de um lado para outro buscando quem o suporte e não há ninguém.
o mundo é deserto e minha mente é podridão.
*
talvez, a única porta do corredor que eu tenha aberto tenha sido a que leva à morte [segredo da vida?]... ouço seus gritos e as cicatrizes coçam e me imagino com asas para voar... ah! se eu tivesse asas...
*
livra-me de meu toque de midas. livra-me de causar medo e dor.
sempre que pensava nas cortinas preocupava-se com o monstro por de trás delas.
não sabia se por medo ou [com]paixão.
dormia e sonhava com o monstro deixando seu secreto esconderijo e visitando-lhe.
acordava assustada como quem sonha que está caindo: tinha medo de altura.
mas o monstro não tinha rosto. isso à incomodava. precisava dar-lhe uma face, pois, ela sabia que o monstro existia, mas jamais pôde encará-lo, abrir as cortinas.
*
sem muitos temores [não sabia de onde lhe vinha a coragem] ergueu as cortinas e viu o monstro.
num primeiro momento, ele ofuscou-lhe a visão. tudo ficou turvo.
quando seus olhos voltaram a enxergar, a primeira imagem que viu foram os olhos do monstro.
não eram maus. nem assustadores. eram como os seus. castanhos, curiosos. pareciam conhecer o terror e a cólera, mas havia neles coragem – uma coragem com a qual ela jamais havia cruzado.
olhou, então, finalmente, a face do monstro que, em metamorfose, já não era mais monstro.
era um homem.
homem que ela mesma escondeu atrás das cortinas por não ter coragem de lembrar como era sua face.
ah, a face do homem-monstro! marcada por anos que ela ainda havia de viver e por um sorriso que ousava ser imperfeito.
e de súbito, o homem [já não-monstro] estava fora de seu esconderijo e ela descobria que era sua metade amada, perdida por décadas.
*
tomou o homem pelas mãos e o levou para a cama – para dormir e abraçar.
"os bandos, humanos e animais, ploriferam com os contágios, as epidemias, os campos de batalha e as catástrofes. é como os híbridos, eles próprios estéreis, nascidos de uma união sexual que não se reproduzirá, mas que sempre recomeça ganhando terreno à cada vez. as participações, as núpcias anti-natureza são a verdadeira Natureza que atravessa os reinos. a propagação por epidemias, por contágio, não tem nada a ver com a filiação por hereditariedade, mesmo que os dois temas se misturem e precisem um do outro. o vampiro não filiaciona, ele contagia.
[...]
estamos longe da produção filiativa, da reprodução hereditária, que só retém como diferenças uma simples dualidade dos sexos, no seio de uma mesma espécie, e pequenas modificações ao longo das gerações. para nós, ao contrário, há tantos sexos quanto termos em simbiose, tantas diferenças quanto elementos intervindo num processo de contágio. sabemos que, entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vêm de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes, e não se deixam compreender em forma de produção, mas apenas de devir. o Universo não funciona por filiação. nós só dizemos, portanto, que os animais são matilhas, e que matilhas se formam, se desenvolvem e se transformam por contágio."
tinha em mente algumas coisas para escrever, imagens sangrentas para usar, palavras de ódio contra o que me afeta para declarar. mas delas me olvidei. meus olhos transitaram por palavras tão nuas, quentes, intensas e alegres que me esqueci do rancor que queria demonstrar.
*
há um novo começo. parece que tudo vai surgir a partir de agora.
é a criação: nada mais belo haverá de existir.
é o momento: explosão e intensidade. surdez. mudez. cegueira. falta de tato.
todos os sentidos falham, mas o coração parece que quer sair pela garganta e ir buscá-lo, trazê-lo para perto, para dentro – sentido número seis.
o que eu quero? um beijo, mãos dadas, um abraço e um afago.
mais que isso, quero gritar. sem voz, com o corpo: amo-te. plenamente. quero-te: como homem, ou bicho, ou mulher – ou homem-bicho-mulher.
e chego a conclusão: estou contaminada, de pernas e mãos atadas, deitada em líquido quente; precioso. não há por onde, nem porque, escapar.
jogado, decompondo, nas areias da praia.
já não respira nem aspira.
corpo morto que assusta crianças e adultos ávidos por raios de sol.
, talvez seja a cor.
roxo, meio esverdeado.
um corpo machucado apenas já é motivo para alarde:
feridas purulentas sempre hão de causar impactos - dos mais diversos.
, talvez seja o cheiro.
cheiro de morte.
[ah, mau sabem os transeuntes que muitos deles são cadáveres com a habilidade de locomover-se robóticamente]
e lá está o corpo: exposto. nu. debruçado na praia para que todos o vejam,
para que todos o sintam. a vingança do afogado:expor-se.
tempo 1: o tempo mais singelo: aquele no qual ainda não existia o pecado, em que não havia sono. mas um encostar profano de bocas incestuosas e o olhar sempre atento dos vigias acabou com esse tempo.
tempo 2: inicia-se o tempo dos médicos, das salas brancas, das folhas de colorir, das drágeas. sem glicose nem cafeína: apenas ritalina. tempo de sono e inércia: criança robotizada, lobotomizada por 20mg diárias. sleep, child, sleep.
tempo 3: veio o tempo de aprender o que era o pecado: eu era o pecado. toda a sujeira do mundo se concentrava no corpo, nos sonhos, nos desejos. vadiazinha imunda [e ainda tão nova]. foi o início da vergonha, da auto-punição, do medo de deus.
tempo 4: foi o tempo do homem e da metamorfose. foi quando a chama explodiu e queimou como nunca. foi quando eu descobri o paraíso e que aquilo deveria ser deus. mas era um segredo. segredo nos olhos negros cheios de culpa, segredo nos olhos castanhos carregados de desejos.
tempo 5: o tempo do primeiro abandono. o homem se fora e a raiva nascia gelada dentro de mim. deus me abandonara e eu abandonara deus. eu não era má. Ele era. tempo de nojo do masculino.
tempo 6: o tempo da maior vergonha. que tipo de ser era eu? uma aberração. voltaram os médicos e as salas brancas e depois, vieram as salas de igreja e os padres em suas imundas batinas fétidas falando-me sobre meus pecados: batizei-me novamente então como filha de satã. deus me odiava, mas, satã me adoraria.
tempo 7: veio o tempo da semi-coragem. quando me encontrei com ela e tudo podia ser feito. éramos uma, duas, três... éramos tudo. contra nós, a sociedade e seus olhares preconceituosos não eram nada. mas apenas cinco dias na semana. nos outros dois, era o tempo da punição por admitir por cinco dias o que eu desejava.
tempo 8: veio o segundo abandono. ela se fora e, junto com ela, a coragem. os olhares dos vigias voltaram. estavam por toda a parte, julgando, culpando, punindo. eu era o alvo. eu e todas as aberrações como eu. ocorreu a primeira tentativa de fuga: 16 comprimidos. fail.
tempo 9: a semi-entrega se deu. a tentativa de ser o mais “normal” possível com alguém que me desejava, mesmo como aberração. mas ele só conhecia metade das pulsões e não suportou todas elas e o tempo acaba como o tempo da dor, das feridas sendo re-abertas – o sangue escorria.
tempo 9/2: re-descoberta do desejo: dor e dominação. sangue e entrega. ah, vida, amor [?] e fuga desesperada!
tempo 10: encontra-se com o pior de si. fui apresentada a tudo o que eu podia fazer de mal à mim e aos que estavam à minha volta. conheci o meu mal. descobri como usar e manipular. mas ainda me envergonhava. trancava tudo em um baú dentro de mim. foi a era glacial. e veio a segunda tentativa: o sangue teimava em não permanecer nas veias. contaminação da aberração. fail.
tempo 11: agora, me parece o tempo de costurar e curar, o tempo de lutar. não há mais vergonha. os olhares ainda estão lá, mas me fazem rir. eles são aberrações, eles e suas repressões. zumbis. todos eles. o corpo já disse basta e passei a escutá-lo com toda a atenção do mundo. é o tempo da coragem. é a hora da guerra. os remédios passaram a ser outros, o sangue passa a ser outro. tempo de ouvir a voz dos desejos, tempo de ser e de expor. tempo animalesco.
“o gelo está derretendo, e as feridas virando cicatrizes. talvez, ainda chegue o tempo o ‘estar bem’. talvez, a coragem possa permanecer - dessa vez.”
tenho em meu colo diversos pedaços de pano para costurar.
cada pedaço vem de uma época diferente, cada um com sua lembrança. nem bons, nem maus: apenas fragmentos do passado.
em dois deles há manchas de sangue: uma, de um sangue aidético, de um passado um pouco distante mas ainda fulgurante na memória; a outra vem de uma veia da qual o sangue saudável desejava escapar para sempre. correr e [es]-correr até contaminar tudo. ambas as manchas são memórias cheias de dores incontáveis. fraquezas e abandonos – não só.
lavo-as? não. elas ficam nos pedaços de tecido. são marcas do passado. nunca serão removidas, mas é preciso fazê-las encaixar-se com os outros pedaços de pano.
tecidos do passado.
estou costurando, um à um, os pedaços e os [trans]-formando numa colcha.
alguns pedaços são fáceis de encaixar: o medo, as dores, o frio, o veneno, a fraqueza, o gosto pela dor, as pulsões, os desejos, as marcas, os olhares preconceituosos dos quais rimos – será uma gargalhada sincera?
com a colcha nos cobriremos e [des]cobriremos: eu e você. nos aqueceremos um no outro e, quem sabe, não hajam mais medo e frio.
"abriu então o saco, espiou um pouco. depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos extremamente fechados enquanto puxava. quando os abriu, ar estava mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.