"A Senhorita X afirma que não tem mais cérebro nem nervos nem peito nem estômago nem tripas, somente lhe restam a pele e os ossos do corpo desorganizado [...]"
segunda-feira, 21 de junho de 2010
[...] com os dentes arrancou a própria língua. sentiu o cortar do músculo e a dor. mas não houve sangue. com a mão direita enfiada pela garganta feriu aquilo que conseguia. sentiu a dor. mas não houve sangue.
com o metal arrancou a pele. já não sentia mais a dor e ainda não havia sangue.
nos músculos apenas pó preto.
aos poucos retirou os músculos e órgãos internos. era penas esqueleto.
encontraram-se no mato que cruzava a estrada de chão do terreno deserto. não foi preciso muito, de pronto perceberam: o deserto era eles.
em meio estouro tudo virou lama, a cada passo dos pés cansados mais lama a cobrir dedos e calcanhares, murchos, rasgados, antigos, cansados.
deram-se as mãos [o que mais podem fazer os beduínos que se perdem na trilha deserta de sal?]. olharam como estranhos um ao outro. jamais haviam se visto, embora fossem velhos conhecidos – amigos, alguns diriam.
vendas negras não permitiam que se aproximassem. apenas tocavam-se com pontas de dedos sem digitais e línguas mortas. devoravam-se aos milhares.
depois, os dentes passaram a morder mais devagar. a mandíbula tornou-se mais lenta, porém, mais forte. mastigavam-se por horas. eram órfãos famintos: odiosos, repulsivos e de mãos dadas parados no negrume da estrada.
a loucura de um alimentava a insanidade do outro.
descansados, novamente, comiam-se.
[imagem: women running on beach - pablo picasso (editada)]