"A Senhorita X afirma que não tem mais cérebro nem nervos nem peito nem estômago nem tripas, somente lhe restam a pele e os ossos do corpo desorganizado [...]"

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

tempos





tempo 1: o tempo mais singelo: aquele no qual ainda não existia o pecado, em que não havia sono. mas um encostar profano de bocas incestuosas e o olhar sempre atento dos vigias acabou com esse tempo.

tempo 2: inicia-se o tempo dos médicos, das salas brancas, das folhas de colorir, das drágeas. sem glicose nem cafeína: apenas ritalina. tempo de sono e inércia: criança robotizada, lobotomizada por 20mg diárias. sleep, child, sleep.

tempo 3: veio o tempo de aprender o que era o pecado: eu era o pecado. toda a sujeira do mundo se concentrava no corpo, nos sonhos, nos desejos. vadiazinha imunda [e ainda tão nova]. foi o início da vergonha, da auto-punição, do medo de deus.

tempo 4: foi o tempo do homem e da metamorfose. foi quando a chama explodiu e queimou como nunca. foi quando eu descobri o paraíso e que aquilo deveria ser deus. mas era um segredo. segredo nos olhos negros cheios de culpa, segredo nos olhos castanhos carregados de desejos.

tempo 5: o tempo do primeiro abandono. o homem se fora e a raiva nascia gelada dentro de mim. deus me abandonara e eu abandonara deus. eu não era má. Ele era. tempo de nojo do masculino.

tempo 6: o tempo da maior vergonha. que tipo de ser era eu? uma aberração. voltaram os médicos e as salas brancas e depois, vieram as salas de igreja e os padres em suas imundas batinas fétidas falando-me sobre meus pecados: batizei-me novamente então como filha de satã. deus me odiava, mas, satã me adoraria.

tempo 7: veio o tempo da semi-coragem. quando me encontrei com ela e tudo podia ser feito. éramos uma, duas, três... éramos tudo. contra nós, a sociedade e seus olhares preconceituosos não eram nada. mas apenas cinco dias na semana. nos outros dois, era o tempo da punição por admitir por cinco dias o que eu desejava.

tempo 8: veio o segundo abandono. ela se fora e, junto com ela, a coragem. os olhares dos vigias voltaram. estavam por toda a parte, julgando, culpando, punindo. eu era o alvo. eu e todas as aberrações como eu. ocorreu a primeira tentativa de fuga: 16 comprimidos. fail.

tempo 9: a semi-entrega se deu. a tentativa de ser o mais “normal” possível com alguém que me desejava, mesmo como aberração. mas ele só conhecia metade das pulsões e não suportou todas elas e o tempo acaba como o tempo da dor, das feridas sendo re-abertas – o sangue escorria.

tempo 9/2: re-descoberta do desejo: dor e dominação. sangue e entrega. ah, vida, amor [?] e fuga desesperada!

tempo 10: encontra-se com o pior de si. fui apresentada a tudo o que eu podia fazer de mal à mim e aos que estavam à minha volta. conheci o meu mal. descobri como usar e manipular. mas ainda me envergonhava. trancava tudo em um baú dentro de mim. foi a era glacial. e veio a segunda tentativa: o sangue teimava em não permanecer nas veias. contaminação da aberração. fail.

tempo 11: agora, me parece o tempo de costurar e curar, o tempo de lutar. não há mais vergonha. os olhares ainda estão lá, mas me fazem rir. eles são aberrações, eles e suas repressões. zumbis. todos eles. o corpo já disse basta e passei a escutá-lo com toda a atenção do mundo. é o tempo da coragem. é a hora da guerra. os remédios passaram a ser outros, o sangue passa a ser outro. tempo de ouvir a voz dos desejos, tempo de ser e de expor. tempo animalesco.

“o gelo está derretendo, e as feridas virando cicatrizes. talvez, ainda chegue o tempo o ‘estar bem’. talvez, a coragem possa permanecer - dessa vez.”

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